Memória de uma mente com lembranças

Era manhã, não lembro bem, não sabia nem se estava viva, ou se era vida ou se era eu apenas existindo mais um dia. Já tinha tomado meu café, já tinha fumado um cigarro. De memórias póstumas, mais um verme de Brás Cubas caminhava por de baixo da minha cadeira de rodas. Mas havia de melhorar, minhas pernas iriam se mexer como antes,  eu iria voltar a ter gosto da vida. Quem sabia?
Eram 9 p.m em ponto, quando o fusca buzinou lá fora. Mais uma vez eu estava a surtar. Risca, risca, risca e não para. Surta, respira e finge que está bem. O médico entrou no quarto, eis que finalmente eu começaria a tratar do que mais me doía. Eu já não estava mais me importando e sorria, para que pudesse me observar melhor.
Um desconhecido ficou parado do lado de fora do quarto para ver o corte em carne viva, olhei a camisa do Venoom, olhei para o seu riso seco de voz baixa, estava envergonhado. Voz tremula e olhos pequenos que brilhavam mais que alguns pontos de luz na água. Eu não sabia que ele me olhara mais a fundo, mais cuidadoso e mais detalhista. Eu o recusara como recusara a viver, mas algo nele havia me dito que não seria a primeira nem a última vez que nos veríamos.  E enquanto ele me olhava, pelo canto do olho eu o também olhara por debaixo da excêntrica face de quem não podia mais amar e por dentro, eu lhe sorri de volta. Eu não sabia que a simples visita de um desconhecido poderia mudar o paradoxo do universo que eu mesma criei para combater o que eu temia, nem sabia que a visita inesperada seria a mudança de uma vida quase perdida por debaixo das cobertas de lágrimas. Digo-lhes com paixão que fora o começo de uma vida que jamais tive. A minha vida fora de The Bends do Radiohead até Muito mais que o amor de Vanguart. Fora da filosofia deprimente de Clarice Lispector até o amor gritado e sem causas de Cazuza. A gratidão me sorriu e eu lhe sorri de volta. A gentileza me sorriu e eu lhe abracei e quanto eu menos esperei, eu tive em mim a maior prova de reciprocidade da vida.
Hoje são 11 p.m em ponto, estou em pé na minha janela fumando o ultimo cigarro do dia. Sabendo nitidamente que não fora só o amor que me abriu as portas. Não fora só aquele sorriso bonito que me tirou da cama. Não fora  só o achar uma alma parecida com a minha que fez tudo ficar tudo bem. Fora a vida. A vida é assim com a gente a cada segundo que nós a respiramos, basta esperar, esperar mesmo que de forma menos aceitável e deprimente, quando tu menos espera, acontece.  Hoje nitidamente lembro que o amor  fora a chave para que a vida abrisse uma porta de oportunidades que me sorriram e agarrei-me com a vida e fui embora daquele quarto com tudo que é meu.
É como o amor desconhecido parado na porta do meu quarto diz e eu complemento:  Foi como um barco perdido que encontrou o porto seguro que lhe abraçou.

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